13/05/2001 - Autotutela ou Justiça com as Próprias Mãos no Direito Brasileiro?
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Hodiernamente,
existindo um conflito entre duas partes, o Direito impõe que para solucionar o
conflito, salvo, ainda, raras convenções arbitrais, se deve acionar a figura do
Estado.
Desta
feita, o Estado, através do Poder Judiciário, terá que pronunciar a vontade do
ordenamento jurídico vigente, em relação ao conflito, ou, ainda, impor o
cumprimento das suas decisões ou da vontade das partes, expressando o caráter
declaratório ou executório do provimento jurisdicional.
Mas
nem sempre foi assim! Nos primórdios da civilização, não havia a figura do
Estado com força suficiente para impor o Direito acima da vontade dos
particulares. Logo, não existia o Poder Judiciário para garantir o cumprimento
do Direito.
Nestes
tempos longínquos, a solução dos conflitos era alcançada através da somatória
das forças dos interessados, vencendo o mais forte. Quando acontecia um crime,
a repreensão se fazia através de vingança privada. Era o conhecido “olho por
olho, dente por dente”.
Numa
história mais recente, ainda ábdia, após este período de ausência total de
jurisdição, o Estado avocou o jus
punitionis (direito de punir), exercendo, inicialmente, e através de seus
próprios critérios de avaliação, sem um juiz distinto, de forma impositiva e à
sua conveniência. Nesta fase inexistiam decisões calcadas nas leis, quanto
menos decisões imparciais. É o que se denomina autotutela, ou exercício do direito pelas próprias mãos,
caracterizada, essencialmente, pela ausência de um juiz imparcial e da imposição
de vontade da parte mais forte.
Com
o passar do tempo, a sociedade foi observando que o regime de autotutela não funcionava
adequadamente, pois, obviamente, tendia a injustiças, assim, buscou-se
estabelecer pessoas neutras (árbitros) para dirimir os conflitos. Inicialmente,
tal função era confiada aos sacerdotes que faziam prevalecer a vontade dos Deuses,
surgindo, assim, a figura do juiz.
Nesta
fase, ainda, as decisões eram tomadas de acordo com os costumes, ou intuição do
julgador, pois não existia a legislação positivada.
Entretanto,
na medida em que a figura do Estado vai tomando consistência, começam a surgir as
primeiras leis, e, por conseqüência, o particular procura-o para ver solucionada
sua pretensão, ou lhe confiar o direito de punir. O Estado adquire força.
Em
Roma antiga, na época da Lei das XII Tábuas, num primeiro momento, os patrícios
levavam as questões para os pretores decidirem, comprometendo-se a aceitar a
decisão como certeza (in jure). Erige-se
a força do Estado, diante da solução dos conflitos.
Contudo,
diante de toda essa evolução do Direito frente ao exercício da justiça com as
próprias mãos, que durou milênios, a sociedade atual ainda mantém o instituto autotutela.
Em
casos específicos do Direito internacional, como, por exemplo, a invasão de
países por meio de artefatos militares (invasão do Iraque), ou por intermédio
de bloqueio econômico, como ocorre em Cuba. Situações, onde, nitidamente,
ocorre a solução de conflito de interesses mediante o uso da força, sem a
mediação de uma parte neutra. Ocorre, também, em regimes de exceção, ou
ditatoriais.
Por
seu turno, o Direito brasileiro, em situações excepcionais, descritas na lei,
admite o exercício da autotutela.
Na
esfera do Direito Civil, mesmo com a evolução do Código Civil de 2002, o qual
restringiu as possibilidades da autotutela,
é possível encontrar tal figura no direito de preservação da posse quando
agredida (turbada ou esbulhada), conforme o art. 1210 do Código Civil, o qual
garante o direito do possuidor manter-se ou restituir-se pela própria força.
Contudo,
vê-se, nitidamente, nessa matéria do Direito, a intenção do legislador em
diminuir as possibilidades do agente (jurisdicionado) fazer justiça com as
próprias mãos. O Código Civil anterior, de 1916, em seu art. 558, por exemplo,
garantia ao proprietário de um terreno invadido, cortar as raízes e ramos de
árvores do terreno vizinho, até o plano divisório.
Na
esfera administrativa, percebe-se, igualmente, a autotutela, em caráter auto-executável das decisões, ou seja, não
precisa da ação do Poder Judiciário para conferir-lhe validade, ressalvado o
direito deste último em corrigir eventuais abusos, através do remédio
constitucional do Mandado de Segurança, ou medidas cautelares pertinentes.
Na
figura do Direito penal pátrio, a autotutela
é mais comum. A própria possibilidade da prisão em flagrante, conferida pelo
art. 301 do Código de Processo Penal Brasileiro, exercida pela autoridade
policial quando manda prender o infrator da lei, configura a autotutela, pois, num primeiro momento,
independe do Judiciário, isto é, prescinde da atuação da figura do juiz. Daí,
muitas vezes, observam-se abusos que são corrigidos pelo Poder Judiciário, quando
acionado.
Qualquer
pessoa que incorrer ou estar na eminência de sofrer mal injusto e grave, pode
socorrer-se da legítima defesa (art. 25 do Código Penal Brasileiro), exemplo
clássico de autotutela, ou justiça
com as próprias mãos, garantida por lei, que confia o Direito a qualquer pessoa
de não ser incriminada quando praticar o fato, dentro de certos limites, em
defesa de sua integridade física (e até moral) ou de terceiros.
Com
menos freqüência, também, ocorre a autotutela
quando qualquer pessoa encontrar-se em estado de necessidade (art. 24 do Código
Penal Brasileiro), ou seja, quem pratica o fato para salvar-se de perigo atual,
que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar. É a típica
situação de escolher a própria vida ou a alheia.
A autotutela revela-se, de igual modo,
naqueles que cometem o fato punível em estrito cumprimento do dever legal, ou
exercício regular do direito, (art. 23,III do código Penal Brasileiro), são
situações específicas, dentro de certos limites estabelecidos pela legislação
extravagante e a jurisprudência. Por exemplo, intervenções cirúrgicas, com
objetivo de salvar vida, sem êxito; violência esportiva, restrita às regras do
evento.
O
Direito brasileiro, sob influência do Direito europeu, permite tais condutas
unilaterais, tendo em vista a impossibilidade de o provimento jurisdicional
estar presente no momento ou na iminência da violação de um Direito, ou mesmo para
evitar o seu perecimento, em face da ausência de confiança do jurisdicionado no
altruísmo alheio.
Por
outro lado, quando a autotutela é
exercida fora dos limites estabelecidos pela lei, o fato é definido como crime
contra a Administração da Justiça. É o exercício arbitrário das próprias razões,
definido no art. 345 do Código Penal Brasileiro, o qual pune todos aqueles que
fizerem justiça com as próprias mãos, para satisfazer pretensão, ainda que
legítima, mas não amparada, ainda, pela justiça (Poder Judiciário). É o que
ocorre com quem toma bens do devedor para satisfazer crédito próprio, sem ordem
judicial.
Vê-se,
também, a autotutela, nas “milícias”
do Rio de Janeiro, que concorrem com as autoridades públicas, sem o necessário
respaldo legal. Nesta situação, os integrantes estão sujeitos às penas do
referido artigo, acrescidas das penas de outros crimes que eventualmente
cometerem.
Cabe
observar que sequer o próprio Estado, na figura de seus agentes públicos, está
livre de penalidade, quando ocorrer abusos ou excessos na manutenção do poder,
ou no exercício da autotutela,
conforme dispõe a lei 4.898/65, que define os crimes de abuso de autoridade. É
o que se noticiou recentemente no Estado do Pará, com a reclusão da menina
menor de idade L., na delegacia de Abaetetuba, em uma cela exclusiva de homens,
diga-se, maiores de idade.
A
evolução do Direito, portanto, parece não ter sido suficiente para acabar, em
absoluto, com o exercício da autotutela.
A tendência legislativa, com a evolução da sociedade, é restringi-la ao máximo e
aumentar a punição do particular ou do agente do Estado que fizer justiça com
as próprias mãos.
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* Sergio Sarrecchia. Artigo atualizado. (original escrito em meados do ano de 2001)
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